sexta-feira, 5 de dezembro de 2008



o que se ouve entre a opy e a escola - corpos e vozes da ritualidade guarani

índice

capítulo oito




considerações finais

“A consciência é simplesmente um meio.(...) Uma categoria de meios foi interpretada como fins: em compensação a vida e seu aumento de potência foram rebaixados à categoria de meio.” (Nietzsche:252)

“Ninguém, na verdade até o presente, determinou o que pode o corpo, isto é, a experiência não ensinou a ninguém, até o presente, o que, considerado apenas como corporal pelas leis da Natureza, o corpo pode fazer e o que não pode fazer, a não ser que seja determinado pela alma.”
Espinosa

“Suprimir o mundo verdadeiro é suprimir também o mundo das aparências  e, com eles, suprimir uma vez mais as noções de consciência e inconsciência  o lado de fora e o lado de dentro.” (Klossowisk)


do intersubjetivo ao corpo sem órgãos

O campo discursivo em que se move esta série de proposições, tem por referência a etnologia regional ameríndia cuja matriz é a corporalidade.
Nos prolongamentos das propostas de Mauss, de trabalhar com as categorias nativas, essa etnologia propõe o corpo como princípio para uma abordagem dessa socialidade e de seus desdobramentos epistemológicos.
Extraiu-se disso, que tais momentos de troca, constituem-se num a mais de intensidade que instaura uma abertura no corpo. Segundo Viveiros de Castro, esses corpos ameríndios não são pensados sob o modo do fato, mas do feito.
Tal índice de abertura do corpo a modificações vem sendo elaborado em resposta à demanda da abordagem metodológica da difícil, porém, fundamental, questão da sensibilidade.
Atribuir valor epistemológico à sensibilidade dos povos indígenas, suscitando sua circulação, são temas de difícil abordagem, especialmente para uma tradição metodológica de modelos explicativos.
No entanto, entre esses povos, as categorias sensíveis modelam a produção de saberes e pautam o regime de reciprocidade.
A partir das vivências em campo, a investigação centralizou-se nas estratégias de abertura dos corpos. A intensidade parece conduzir os momentos de intercâmbio que caracterizam a aprendizagem centrada na corporalidade.
Essa intensidade é modulada na ritualidade por variações de compasso, em que o corpo consiste num campo intermediário maleável em que configuram trocas tanto sociais, como cósmicas.
Esse valor não se desdobra, conforme Viveiros de Castro, em objetivações materiais como as que caracterizam as economias do dom ou da mercadoria. As trocas podem atingir a intensidade da violência ou da mortalidade, como nas iniciações ou na guerra, considerada em sua extensão antropofágica. Inscrevem-se no corpo.
Buscou-se apoio na filogênese de Leroi-Gourhan, por encaminhar uma estétia fisiológica norteada pela corporalidade como recurso da ritualidade. Na definição da estética fisiológica, o complexo senso-perceptivo funciona como plano intermediário entre as dimensões maleáveis do corpo (operações simbólicas do intelecto) e suas estruturas mais rígidas (base biológica animal) visando o comportamento ativo. Articuladas em esquemas sensíveis ou todos dinâmicos perceptivos, a estética fisiológica coordena os jogos de intensidade que procedem aberturas em que se operam crises e auto-regulações, momentos de aprendizagem.
Com Bachelard, empreendeu-se a hipótese de que um nietzscheísmo insuflaria no corpo a leveza resultante de uma transubstanciação integral (iniciação do despedaçamento quaternário, 1990: ), definindo a imaginação dinâmica.
Enfim, o rastro que impulsiona esse movimento conduz a Nietszche. O alinhamento desta investigação à obra de F. Nietzsche deve-se ao esteio corporal que sustenta sua primeira publicação. Essa filosofia primeira constitui/traça um plano de imanência na medida em que incorpora as vivências sensíveis da ritualidade e, num mesmo movimento, apropria-se dessa estética como programa. A ritualidade dá corpo a suas incursões pelas dimensões do uno e do múltiplo, as quais lhe permite afirmar pela boca de Heráclito: O Um é o Múltiplo.


da percepção ao impessoal

“Don Juan repetiu que o ponto crucial de nossa dificuldade em voltar ao abstrato era nossa recusa em aceitar que podíamos saber sem palavras ou mesmo sem pensamentos.” (Castañeda, 2000:54)

“Que o valor do mundo reside em nossa interpretação (que, em qualquer lugar, talvez, haja possibilidades de outras interpretações que não sejam puramente humanas), que as interpretações tenham sido até o presente apreciações segundo uma perspectiva particular, graças às quais nós nos mantemos em vida, quer dizer, em Vontade de Potência... isto impregna todos os meus escritos. O mundo que nos concerne é falso, quer dizer, não é estado de fato, mas invenção poética (...)” (Nietzsche apud, Brum:120)

Se a categoria etnológica que norteia a antropologia ameríndia é a corporalidade, propõe-se aqui que essa categoria se destaca por fornecer um esquema de causalidade (Deleuze-Guattari, 1997:77) que permite a reelaboração da relação entre a antropologia e o pensamento dessas sociedades(Viveiros de Castro, 2002).

O corpo é instrumento e, concomitantemente, matéria talhada. Princípio de composição e, ao mesmo tempo, elemento composto. A ritualidade foi tomada como conjunto de práticas exemplar para vivenciar esta experiência O corpo como matriz de significados sociais e objeto de significação social. Em ritualidade proporciona o princípio de composição, enquanto resulta, concomitantemente, em elemento composto.

“...a corporalidade não é vista como experiência infra-sociológica, o corpo não é tido por simples suporte de identidades e papéis sociais, mas sim como instrumento, atividade, que articula significações sociais e cosmológicas: o corpo é uma matriz de símbolos e um objeto de pensamento.” (Seeger et alli, 1987:20)

Penso ser essa uma primeira e fundamental contribuição do pensamento indígena para uma educação de resistência ao ensino formal oficial, de caráter assumidamente homogeneizante e tecnicista. Essa contribuição relaciona-se à especificidade desse conhecimento do homem e do cosmos constituído no e como corpo.
A noção de pessoa, conforme foi deslocada de seu eixo etnocêntrico por Mauss, e encampada por Seeger (1987), deve fornecer elementos para uma abordagem das especificidades da aprendizagem Guarani na constituição de identidades individuais.
Segundo esses autores, a posição epistemológica de assumir a noção de pessoa como categoria, como construção coletiva que dá significado ao vivido, é fundamental para a abordagem das sociedades indígenas sul-americanas.
O que consideramos válido para a reflexão das relações de aprendizagem indígena pensadas a partir do nosso contexto social.
Essa fabricação de corpos, na órbita dos ciclos rituais, não se limita às determinações sociais, o corpo não regula apenas a identidade, e sim articula significações sociais e cosmológicas; o corpo é uma matriz de símbolos e um objeto de pensamento.

“Na maioria das sociedades indígenas do Brasil, esta matriz ocupa posição organizadora central. A fabricação, decoração, transformação e destruição dos corpos são temas em torno dos quais giram as mitologias, a vida cerimonial e a organização social. Uma fisiológica dos fluidos corporais - sangue, sêmem - e dos processos de comunicação do corpo com o mundo (alimentação, sexualidade, fala e demais sentidos) parece subjazer às variações consideráveis que existem entre as sociedades sul-americanas sob outros aspectos.” (1987:20)

Retomar a noção de pessoa conforme abordada nesse texto-manifesto da etnologia regional (Seeger et alli, [1979]1987) é um dos pontos centrais a que conduz este trabalho.
O impulso que emana da matriz do moderno pensamento ocidental, cujo eco se ouve na antiguidade, conduz a se pensar a aprendizagem em termos de formação de subjetividades, considerando-se sujeito enquanto unidade, essência, permanência e universalidade.
Afirmar o contra-fluxo dessa corrente, é o que se entrevê aqui através da ritualidade . Percebe-se no trato da ritualidade que seus elementos: canto, execução instrumental sonora, dança, tabaco, etc; privilegiam exclusivamente a vivência simbólica. O corpo projeta-se: arquiteto matéria-prima e obra.
Se levarmos em frente a concepção segundo a qual o corpo redefine a noção de pessoa, e conduzirmos o corpo redefinido pela hecceidade, há que se considerar a impessoalidade que redefine a subjetividade.
Para tanto, o ponto onde se parou, “em toda parte onde se reconhecem ‘efeitos’, vontade atua sobre vontade”, isso se aplica tanto ao mundo dito ‘material’ quanto à nossa vida instintiva inteira. O corpo entendido nesse dinâmico jogo de forças define o processo de subjetivação enquanto efeito de uma operação que se dá na exterioridade e não como interioridade. O perspectivismo aciona os virtuais proporcionados pela proliferação dessas figuras de outrem. Problematizar o sujeito equivale a recusar-se a atualizá-lo. Essas zonas intermediárias em que o animismo é acionado pelo perspectivismo são tanto corporais como sociais.
A corporalidade é, assim, abordada em termos de sensorialidade comparada. Busca-se demonstrar que a questão não se encaminha no sentido de demonstrar que cada cultura pode ter suas especificidades perceptivas ou sensoriais. O contexto (modelo) ecológico (Menezes Bastos, 1978), ainda, era transcendente. O problema da ritualidade é considerá-la como um dispositivo de compreensão que propõe um princípio de composição próprio, em relação à nossa produção de conhecimento e sua reflexão.
Essa imagem do pensamento reconduz, pela via das linhas, que conduzem de uma subjetividade como substrato ou continente, uma concepção da subjetivação que se dá ao longo das superfícies, a partir da imagem do pensamento de um sistema da crueldade, em que os processos se dão na dinâmica dos afetos - afetar e ser afetado - em que, menos que trocas, esses corpos combatem, medem forças. O aprender, aqui, é norteado por esta imagem do pensamento. Não é fácil acercar-se dessa fascinante (e tão pouco compreendida e acionada) escritura dos corpos (sistema da crueldade) que nos fascina no vislumbre de Clastres, e o conduz às sociedades contra-estado. Inscrever no corpo instaura tal imagem em que se pensam tais processos a partir das noções de superfície e de finitude.
O problema não se dá em termos de fenomenologia. Opta-se por uma via outra. Ao conduzirmo-nos nos campos problemáticos e realizar experiências com este pensamento, fazendo-o penetrar sempre mais fundo no nosso, a cada vez que o aprofundamos sem explicá-lo, mas cruzando a consciência em velocidades imperceptíveis (lentas ou rápidas, o que dá no mesmo, visto que ambas conduzem ao limiar da percepção e que se constituem entre si).
Aqui, o perigo real, é tomar o ouvir num sentido fenomenológico, investido duma transcendência desnaturada, como se a imanência estivesse (qualidade) na substância, e não o inverso. Problematizar o ouvir nessa bifurcação de disciplinas que configura o imaginário (antropologia, filosofia, psicologia, aprendizagem, musicologia) equivale a propô-lo em relação a uma imagem do pensamento.
De forma semelhante com que a materialidade da linguagem, e do próprio texto , é invocada para definir a intersubjetividade, aqui a própria percepção é investida, e reconfigurada, no movimento acionado por ela. A dissipação dessa identidade molar à heccceidade que a circunscreve, constitui a singularização.

Mainó Guaú

Mba’émo morandú pa
rerekó, Mainó?
Otirí Mainó!
Nde yvoty -ry rami, ñaë
nde juká, Mainó.
Otirí, otirí Mainó!


Conforme se disse aqui, cada criança traz um cântico em sua concepção. Ñe’ë soa o princípio sonoro guarani. Som primordial, primeiro signo a afetar os homens e despertar o ouvir: o raio-trovão. Sabe-se o poder da evocação nessa cultura: antes de serem secretos, os “nomes”, seriam impronunciáveis, inomináveis. O que se conhece por palavra-alma, ou por nome, seria o princípio sonoro atribuído aos seres por Tupã. As belas palavras que abrem este trabalho estariam povoadas por este sentido: ...meus ñe’ë, não os percais.
Segundo William, Verá Mirim, o ambá, altar guarani assemelha-se a um portal. Por vezes, em meio aos cantos pode-se ouvir a zoada dos gwyrá, pequenos que se achegam através dele. É também, do ambá que emana a força que puxa os convalescentes (em tratamento) à desagregação total.
O ambá consiste em dois bastões, apyká em belas palavras, insígnia do deus das águas e do raio-trovão, fincados no chão. Todos os mensageiros, yvyráijá, donos do pequeno bastão, trariam nas mãos essa insígnia. Esses bastões sustentam o apyká, insígnia maior da cerimonia: a barquinha. Essa pequena canoa, talhada em cedro, simboliza o ambá. Tem seus dois lados iguais, tanto se chega, como se parte.
Na cerimônia de nomeação, nhemongaraí, o ambá se ergue ao centro da casa. Nele ficam todas as velas. As velas são confeccionadas uma a uma. São feitas de cera de abelha e barbante, e cada qual modela a sua. Serão acesas no momento máximo do nhemongaraí m’byá. Nesse momento de evocação, em que todos cantam, uma luz singular ilumina a casa.
Após a queima das velas o che ramói inicia seu canto e sua dança. A princípio lentamente, progride até a intensidade êxtática que lhe traz os ñe’ë. Em meio ao canto incessante, os ñe’ë emanam um a um, quase indistinguíveis de sua boca. O che ramoi os identifica por sua direção. Os ñe’ë chegam deslizando por linhas que se cruzam em todas as direções. Cada direção é atribuída a uma força característica.
Tupã é localizado ao oeste, o poente, primordial morada dos mortos.

O que o estudo em mãos não pretende: demonstrar que cada cultura pode ter especificidades perceptivas ou sensorialidades próprias. Essa incorporação epistêmica dos sentidos conduz a uma apropriação do corpo pelo rito como uma substância que se percebe a si própria em processo. Seu problema constitui o próprio processo, como Seeger com seu processo singular de concepção da transcrição musical em processo. A princípio, esta noção conduziu à dinâmica da intersubjetividade como regime comunicativo que guiou a busca do sentido da interação enunciativa.
No entanto, intuiu-se que um princípio trágico tonalizava a ritualidade e seus processos. A concepção do corpo como jogo de forças que evidencia sua condição de finitude marcou o problema da morte, questão crucial da mística e da ritualidade dos povos indígenas. Esse tom trágico é acionado na via de um sistema da crueldade, apropriado via Clastres, como princípio da iniciação. Apyká designa, ainda, o banco no qual está assentada esse ñe’ë, o corpo.
É bom estar vivo. É com essa máxima de um interlocutor que Carneiro da Cunha conclui seu estudo dos mortos. Estar morto, aqui (no caso), equivale a ser privado de um corpo. Uma alteridade radical .
A morte do corpo, princípio de desagregação, evidenciada como fenômeno orgânico, detona um princípio de fertilidade máximo, de celebração da vida e do corpo. De um corpo de afetos, de intensidades, numa concepção distinta de nossos fatores conscientes de prazer e desprazer. Um regime de intensidades é da ordem de tal sistema de crueldade. A ritualidade, tomada como dispositivo de compreensão, tem nos fluxos intensos da corporalidade seu princípio de composição. A vida não é vista de fora. A perspectiva, o ponto de vista, ao definir um corpo, deixa de ter o caráter abstrato que se atribui a ela na tradição ocidental. As interpretações seriam corpos.
Detecte-se aqui, a passagem perpetrada entre a concepção de uma subjetividade de princípio orgânico e outra, de um princípio que se chamará, numa conexão com o campo conceitual da etnologia de Viveiros de Castro, de figura de outrem, concepção de Gilles Deleuze para designar um princípio de subjetivação que constitui por hecceidades.

“Não se trata, portanto, de propugnar uma forma de idealismo intersubjetivo, nem de fazer valer os direitos da razão comunicacional ou do concenso dialógico. Meu ponto de apoio aqui é o conceito acima evocado, o de Outrem como estrutura a priori.(...) Outrem é a expressão de um mundo possível.” (2002)

O conceito de hecceidades será útil para nortear o princípio de composição coordenado pela corporalidade via ritualidade. Ele fornece o contraponto à concepção de sujeito, arraigada na epistemologia, no pensamento dos regimes de produção de conhecimento, de tradição ocidental.

“Pois você não dará nada às hecceidades sem perceber que você é uma hecceidade, e que não é nada além disso.(...) Você é longitude e latitude, um conjunto de velocidades e lentidões entre partículas não formadas, um conjunto de afetos não subjetivados. Você tem a individuação de um dia, de uma estação, de um ano, de uma vida” (1997a:49)

A definição de um princípio de composição da inconstância, digamos assim, é uma constante na obra de Deleuze, conforme se estudou aqui com as matrizes conceituais de plano de transcendência e plano de imanência e como se vê em seus estudos sobre a imagem.
“Não creio numa especificidade do imaginário, mas em dois regimes de imagem: um regime que se poderia chamar de orgânico, que é o da imagem movimento, que opera por cortes racionais e por encadeamentos, e que projeta ele mesmo um modelo de verdade (a verdade é o todo...). E o outro é um regime cristalino, o da imagem-tempo, que procede por cortes irracionais e só tem reencadeamentos, e substitui o modelo da verdade pela potência do falso como devir.” (1992:86)

Esse sistema da crueldade, como foi visto, pauta-se na corporalidade enquanto dinâmica dos afetos, enquanto poder dos corpos, de afetar e ser afetado. Essa concepção envia a uma característica crucial deste princípio de composição que se tenta descrever.
Instalando-se nessa dobra em que a distinção entre ser e pensar é suprimida pela noção de intensidade, conceito fundamental deste sistema, redefine-se o pensamento de tradição ocidental, norteado por uma doutrina do juízo, que define relações de conhecimento que se estabelecem a partir de uma ordem abstrata. Esse regime estabelece uma tábua de valores assentada na transcendência e se define por um infinito poder de organização.
A concepção do trágico, na via dionisíaca, consiste em apropriar-se dessa escrita que os corpos imprimem uns nos outros. As relações finitas entre os corpos, liberam os outros possíveis do juízo, enquanto sistema de pressupostos que julga a pertinência e a legitimidade das pretensões. As relações são combates, e isso é tudo.

“As interferências também não são trocas: tudo acontece por dom ou captura.” (Deleuze,1992:156)

“O combate-contra procura destruir ou repelir uma força (lutar contra as ‘potências diabólicas do futuro’), mas o combate-entre, ao contrário, trata de apossar-se de uma força para fazê-la sua. O combate-entre é o processo pelo qual uma força se enriquece ao se apossar de outras forças somando-se a elas num novo conjunto, num devir.” (1997b:150)

Assim, o problema da ritualidade se coloca enquanto dispositivo de compreensão, ao fornecer um esquema de causalidade próprio (o da corporalidade). Nesse esquema de causalidade o princípio de composição é elaborado (percebido) no processo, o que aciona um regime de subjetivação (modos de existência). Por subjetivação, se designa aqui a constituição de subjetividades via reciprocidade entre perspectivas humanas e não-humanas, lembrando que o conceito de perspectivas (Viveiros de Castro, 1996) já opera neste sistema da crueldade.
Assim, para deixarmos de lado essa designação ainda estranha, visto que só tem a função de apontar o caráter processual da subjetividade, passamos a designação da figura de outrem.
“É justo por que o antropólogo toma o nativo muito facilmente por um outro sujeito que ele não consegue vê-lo como um sujeito outro, como uma figura de Outrem, que, antes de ser sujeito ou objeto, é a expressão de um mundo possível.” (2002)

Por que trazer essa concepção para o problema da ritualidade aqui estudado? Essa noção envia para os princípios da etnologia a que se alinha, ou dos quais se apropria, este estudo da aprendizagem via imaginário. Tais princípios metodológicos propõem o problema como resultante da relação entre antropólogo e nativo (o que se pretende estender ao problema aqui proposto das relações de aprendizagem), e não como dado de antemão. Foi o exemplo que tomamos do Seeger de Entre o gabinete e o campo, ou do Viveiros de Castro de Araweté.

Esse tom trágico com que a morte penetra a vida, coordenando o destino em sua dimensão oracular, é apropriada da filosofia pela reflexão última de Gilles Deleuze como uma vida. Numa retomada do empirismo transcendental, o autor problematiza o campo transcendental, suspendendo-lhe a consciência assubjetiva imediata, encaminhando-o ao devir das sensações. Distinguindo transcendente e transcendental, redefine o campo transcendental como puro plano de imanência. Apropria-se da concepção espinosista de que a substância e os modos estão na imanência, e não o contrário. Aqui está o ponto.

“O transcendente não é o transcendental. Na falta de consciência o campo transcendental se definiria como um puro plano de imanência, pois ele escapa a toda transcendência do sujeito como do objeto. A imanência absoluta está em si mesma: ela não está em alguma coisa, para alguma coisa, ela não depende de um objeto e não pertence a um sujeito.(...) Quando sujeito e objeto, que caem fora do campo de imanência, são tomados como sujeito universal ou objeto qualquer aos quais a própria imanência é atribuída, ocorre toda uma desnaturação do transcendental que não faz mais que redobrar o empírico (assim em Kant), e uma deformação da imanência que se acha, então, contida no transcendente. A imanência não se refere a uma Alguma coisa como unidade superior a toda coisa, nem a um sujeito como ato que opera as sínteses das coisas: é quando a imanência não é mais imanência de um outro senão a si, que se pode falar de um plano de imanência.” (2001:227)

Imanência de um outro. A supressão da consciência que conduz a definição do campo transcendental estende-se à afirmação do plano de imanência como uma vida. Essa singularidade, própria da hora extrema, dissemina-se nos entre-momentos, experiências diferenciais de intensidade. As singularidades ou os acontecimentos de uma vida dispõem-se distintamente de sua atualização em sujeitos e objetos. “Parece mesmo que uma vida singular pode abster-se de toda individualidade ou de todo outro concomitante que o individualiza”. (2001:229)

Afirma-se que essa vida imanente ultrapassa a consciência, constituindo-se em transcendência, sem reduzir-se a ela. “Um é sempre o índice de uma multiplicidade: um acontecimento, uma singularidade, uma vida...(...) A transcendência é sempre um produto da imanência” (2001:229)

A partir disso, inverte-se a concepção segundo a qual o campo transcendental determina-se pela consciência ou pela intersubjetividade. A concepção segundo a qual, a conquista da imanência dependeria da intersubjetividade encontra uma outra via. A experiência de uma vida define-se pelas hecceidades, relações de desestratificação.
A desnaturação do transcendental pela deformação da imanência é o que se busca problematizar com esta investigação. Conceber a mística Guarani a partir de nossa epistema coloca esse risco em nosso encalço. Por isso a necessidade de firmar-se no plano de imanência, cujo princípio de composição apresenta-se num mesmo movimento com aquilo que concebe.
Ao despistar as noções que ocultam o princípio de composição do plano de transcendência, quais sejam, sujeito, objeto e mesmo intersubjetividade, libera-se, enfim, para operar com o conceito de Outrem como expressão de um mundo possível.
“O que para mim substitui a reflexão é o construcionismo. E o que substitui a comunicação é uma espécie de expressionismo. O expressionismo em filosofia encontra seu ponto mais elevado em Espinosa e em Leibniz. Creio ter encontrado um conceito de Outrem ao defini-lo como não sendo nem um objeto nem um sujeito (um outro sujeito), mas como sendo a expressão de um mundo possível.” (Deleuze, 1992:184)
Daí a recusa, então, de atualizar esses possíveis do pensamento indígena. O índio primitivo é a fantasia do combate-contra, estabelecido por uma doutrina do juízo, de ocultos pressupostos.
Daí a decisão pela experiência de um vigoroso combate-entre com esse mundo de outrem. Decisão de apropriá-lo como virtuais, fonte de uma multiplicidade de mundos. Combate de guerreiros: amor e ódio. Corpos que se marcam em relações de força.
A esse princípio, conduz o ouvir. Liberar-se de buscar um outro, que não seja pura expressão de um mundo possível; que pré-exista fora da expressão. Deixar-se ouvir. Para concluir, deixa-se soar a palavra de Deleuze sobre o fundo do silêncio Guarani.

“Por exemplo, as crianças muito pequenas assemelham-se todas e não têm quase nada de individualidade; mas elas têm singularidades, um sorriso, um gesto, uma careta, acontecimentos que não são de caracteres subjetivos. As crianças muito pequenas são atravessadas por uma vida imanente, que é pura potência, e também por beatitude, através dos sofrimentos e das fraquezas.(...) Há uma grande diferença entre os virtuais que definem a imanência do campo transcendental e as formas possíveis que o atualizam e que o transformam em alguma coisa de transcendente.” (Deleuze, 2001:229)